O caso da fotógrafa misteriosa

Vivian MaierNo ano de 2007, John Maloof era um corretor de imóveis que cultivava um projeto cultural: publicar um livro sobre uma área antiga mas pouco prestigiosa de Chicago. Para isso, precisava de boas fotos de época, e passou a percorrer mercados de pulga, brechós e leilões atrás de material. Numa das incursões, topou com uma caixa repleta de negativos; olhou alguns, viu que eram fotos de Chicago nos anos 60, e resolveu arriscar, pagando U$ 380 pelo lote. Mais tarde, conferindo o material com calma, ficou frustrado. Não havia lá, aparentemente, nada que pudesse aproveitar. Guardou então a caixa e não pensou mais no assunto até o ano seguinte, quando “Portage Park” foi publicado.

Quando começou a escanear os negativos, porém, Maloof acabou se envolvendo de tal forma com as fotos que, menos de um ano depois, estava nas ruas com uma velha Rolleiflex, tentando capturar por si mesmo imagens semelhantes. Àquela altura, já estava tão apaixonado pelo seu tesouro que fez cursos de fotografia e montou um laboratório no sótão de casa, onde passava horas revelando, ampliando e estudando os mistérios da química e da luz.

Estava também obcecado em descobrir quem era a pessoa que produzira tantas e tão extraordinárias fotos. Passou um bom tempo indo atrás dos compradores dos demais lotes do leilão, na esperança de reunir as fotos num único acervo e, eventualmente, achar mais pistas a respeito de quem as fizera. Conseguiu assim mais de cem mil negativos, cerca de 90% do total disponível.

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Enquanto isso, numa outra parte da cidade, uma velha senhora chamada Vivian Maier chegava ao fim de uma existência singular. Solteira, sem filhos, parentes próximos ou amigos chegados, vivia num pequeno apartamento alugado por três adultos de quem havia sido babá quando crianças. Ao longo dos últimos anos saíra de uma condição de relativo conforto para a absoluta pobreza; chegara a viver na rua, de onde suas ex-crianças a tiraram, e não conseguira sequer pagar o aluguel do depósito onde, por falta de residência própria, armazenava os seus pertences — essencialmente, recortes de jornais, antigas câmeras fotográficas, ampliações, filmes não revelados. E negativos: incontáveis negativos! Por causa da falta de pagamento, as caixas foram vendidas em 2007 para um antiquário que as dividiu e leiloou em pequenos lotes.

No inverno de 2008, Vivian escorregou no gelo, bateu a cabeça no chão e, ao contrário do que prognosticaram os médicos, não conseguiu se recuperar. Morreu pouco tempo depois, em abril de 2009, aos 83 anos de idade. As ex-crianças publicaram um obituário no Chicago Tribune:

“Vivian Maier, cidadã francesa e moradora de Chicago nos últimos 50 anos, morreu em paz na segunda-feira. Foi a segunda mãe de John, Lane e Matthew, um espírito livre e fraterno, que tocou as vidas de todos que a conheceram. Sempre disposta a dar conselhos, opiniões, ajuda. Crítica de cinema e fotógrafa extraordinária. Uma pessoa realmente especial que vai fazer muita falta, mas cuja longa e maravilhosa vida celebramos e nunca esqueceremos.”

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Vivian Maier era a autora das fotos que John Maloof comprou no leilão. Os dois nunca se encontraram, mas seus destinos ficaram intimamente entrelaçados. Desde que abriu a caixa de negativos, ele passou a viver em função da fotógrafa até então desconhecida: consultou arquivos públicos, correu atrás de pessoas que a conheceram, tentou, em vão, convencer inúmeras instituições públicas e particulares a cuidar do seu acervo.

Maloof não tinha nenhum conhecimento de história da fotografia. Não sabia dizer se o que tinha em mãos era material fora do comum, ou coisa que se encontra habitualmente em armários de família. Criou um blog, que passou meses sem receber uma única visita. Em outubro de 2009, entrou num fórum de fotografia de rua do Flickr, fez um post com um link para o blog e pediu ajuda à comunidade:

“O que eu faço com isso? Será que esse tipo de material merece uma exposição ou um livro? Ou trabalhos como esse aparecem com frequência? Qualquer orientação é bem-vinda.”

O povo do Flickr ficou louco com o que viu. O blog virou um sucesso, revistas de fotografia voaram em cima e logo o nome de Vivian Maier estava nos jornais, com a sua história misteriosa e fascinante. Hoje seu trabalho é comparado ao de mestres há muito consagrados, como Henri Cartier-Bresson ou Diane Arbus.

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John Maloof conseguiu descobrir várias coisas a respeito de Vivian Maier. Descobriu que ela nasceu em Nova York em 1926, que viveu a infância e a juventude entre a França e os Estados Unidos, que voltou para Nova York em 1951 e que, em 1956, mudou-se para Chicago, onde foi contratada para cuidar dos três meninos que, até o fim, seriam o que teve de mais parecido com uma família. Descobriu que passou a vida como babá, e que sempre que saía com as crianças de quem estava cuidando levava a câmera consigo, embora nunca mostrasse as fotos a ninguém.

Esses fragmentos de biografia, junto com depoimentos das ex-crianças, serviram de base para o documentário “Encontrando Vivian Maier”, de Charles Siskel e do próprio Maloof; um segundo documentário, “O mistério Vivian Maier”, foi produzido pela BBC.

Aqui no Brasil, a Autêntica acaba de lançar o livro “Vivian Maier, uma fotógrafa de rua”, com apresentação de John Maloof e prefácio de Geoff Dyer.

(O Globo, Segundo Caderno, 24.07.2014)

9 respostas em “O caso da fotógrafa misteriosa

  1. Cora,

    Acho admirável como você resgata e narra histórias como essa: curiosas, humanas e tocantes.

    O título me lembra outra crônica sua: “o caso do poema roubado”, interessante história familiar contada com muito carinho e que termina com uma afirmação que não esqueci, mesmo passado tanto tempo: “um país onde crianças roubam poemas e adultos os devolvem ainda tem esperança”.

    Escrever bem é uma arte e você é muto boa nisso. Parabéns!

    Com sincera admiração,

    Mario Wilson

    Em tempo/Off topic: após a intervenção do eletricista, seu lustre parou de queimar as lâmpadas?

  2. Não só a história dela emociona, como também o imaginar “quantas dela” não há de haver, pessoas espalhadas pelo mundo, anônimas, e detentoras de grandes talentos, e cujas obras
    poderão um dia ser descobertas por acaso. Ou não.

  3. Fiquei emocionado quando, há um tempo atrás, li um artigo sobre ela! Essa mesma foto, inspirou a minha selfie com a Rollei, que coloquei no Flickr.

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