Pangas e mangas

E não é que o panga deu panos para as mangas? O peixe vietnamita tem admiradores e detratores em quase igual número. Os admiradores apreciam o gosto e o preço; já a principal bronca dos detratores é a distância que o panga, criado e processado no Vietnã, viaja até vir parar nas nossas mesas. Recebi emails de donos de restaurante que o servem com grande sucesso, de leitoras que me deram ótimas receitas (pelo visto, ele funciona muito bem assado) e de ecologistas preocupados com o custo ambiental da longa viagem do peixe; recebi também um email de Thiago De Luca, diretor comercial de uma empresa chamada Frescatto:

“Como você mesma disse, o boato alarmista que se espalhou na internet foi enorme”, escreveu o Thiago. “Mesmo com uma forte campanha da nossa equipe em pontos de vendas, site e SAC, ir contra um hoax não é tarefa fácil. Mesmo informando a real situação do pescado, mesmo mostrando que temos todos os documentos da Anvisa, de controle de qualidade e informações técnicas sobre o panga, não é fácil ir contra a onda dos boatos da internet. Eu mesmo já fui ao Vietnã quatro vezes para conhecer a produção, atestar a qualidade e procedência e fechar contratos com fornecedores.  Para você ter uma idéia, na época em que o boato surgiu as vendas caíram mais de 50 %, e estamos falando de mais ou menos 50 toneladas mensais de filé. Hoje, as vendas já estão em recuperação, mas ainda não chegaram ao patamar anterior.”

O email do Thiago me lembrou o email do Guilherme Giorgi, diretor do Sal Cisne, que teve tanta repercussão aqui e no blog no ano passado. Gosto quando representantes da indústria mostram que estão atentos aos consumidores. E gosto, sobretudo, quando essa atenção vem da indústria de alimentos. Comida é coisa séria, que tem que ser tratada com o máximo respeito.

O engenheiro de pesca Maurício Duppré, que mantém o blog Cardume também escreveu.

“Por trabalhar no setor, vez por outra me perguntam se este email bomba procede.  Ano passado recebi tanto esta pergunta que postei em meu blog duas matérias sobre o panga, uma esclarecendo esta inverdade com um documento do governo brasileiro atestando a sua boa procedência,  e outra apresentando seu processo produtivo lá no Vietnã, com um vídeo de uma empresa local mostrando do cultivo ao filé. Elas estão em bit.ly/V17Hjy e bit.ly/QoXf8N.”

Assisti ao video indicado pelo Maurício, que é um produto estranho na categoria cinema. Ele não tem narração nem legendas. Apenas acompanha a “fabricação” dos peixes, da alimentação dos bichinhos à lavagem das roupas dos funcionários ao final de um dia de trabalho. A trilha sonora é esquisitíssima para o tema: canções pop ocidentais, como  “The rhythm of the rain” e “El condor pasa”, tocadas numa porrinhola eletrônica. Depois de três minutos insuportáveis, cliquei no mute e assisti ao resto dos nove minutos em silêncio.

Ao contrário do que afirma o hoax, os pangas não são criados debaixo de palafitas. Ou, por outra: nem todos os pangas. Os do vídeo — que, imagino, sejam parentes dos que chegam ao Brasil — vêm de fazendas gigantescas. Logo depois de uma externa da fábrica, a camera mostra alguns trabalhadores percorrendo um trecho de rio numa balsa e distribuindo pás de ração pela água. Na próxima cena, os pangas capturados por uma rede são transportados em tonéis para um barco que os leva, vivos, até a fábrica; lá são recolhidos mais uma vez, agora em baldes, e despejados na esteira que os leva até uma linha de processamento, onde são decapitados, limpos e transformados em filés.

Tudo é muito limpo e eficiente. O vídeo mostra os operários que estão pegando no serviço lavando e desinfetando as mãos. A limpeza das esteiras e das bancadas, por sinal, é constantemente enfatizada. Nas últimas cenas, os filés são congelados, empacotados e embarcados em caminhões frigoríficos.

o O o

O mundo é um lugar esquisito e me incomoda muito saber que seres humanos como eu passam a vida tirando a vida de outros seres vivos só para que eu possa me alimentar sem ter que matar a minha própria comida. Não consigo fazer ideia do que vai pela cabeça de alguém que leva oito horas por dia degolando peixes, seja aqui ou no Vietnã, e tenho pena dos meus semelhantes que dependem de empregos tão cruéis para sobreviver; para não falar nos bichos, é claro, que num universo ideal morreriam todos de velhice. Apesar disso, adoro peixe e não dispenso um filézinho bem preparado.

Para mim, aliás, um dos grandes erros do nosso projeto básico é sermos ao mesmo tempo onívoros e capazes de empatia. Leões não parecem se preocupar muito com os sentimentos das zebras que abatem, assim como os meus gatos, sempre tão carinhosos e gentis, pouco se importam com o sofrimento  dos insetos que eventualmente capturam. Mas isso já é outra história… e mais pano ainda para as mangas.

(O Globo, Segundo Caderno, 29.11.2012)

14 respostas em “Pangas e mangas

  1. Ainda sobre o sacrifício de animais para a nossa alimentação, atrevo-me a colocar aqui um texto de há uns anos tirado do meu antigo blog: (Espero que não leve a mal o atrevimento, Cora)

    “Tenebrosa noite, escuridão compacta como piche, lancinantes gritos do animal ferido, perseguido, acuado pelo bicho-homem, predador que usa potentes projetores de luz vergastando as sombras, tonitruantes e aterradoras máquinas de matar…
    De repente, ali, pertinho, olhos irrealmente luminosos sob o feixe de luz e exaustos na inútil corrida pela vida que se esvai pelos ferimentos já recebidos, parecem olhar diretamente para mim, comunicando-me sua resignação pela sorte que lhe coube e rogando pela bala de misericórdia que lhe acabe com o sofrimento.
    Faço com todo o cuidado coincidir a mira no espaço entre seus lamentosos olhos…mas nada mais acontece! Como que petrificado, tenho meus sentidos paralisados e sou impedido de prosseguir o fatal movimento do meu dedo sobre o gatilho da arma!
    Meu estupor acaba abruptamente com três tiros rápidos de fuzil automático disparados bem junto de mim. Seguem-se a visão do animal desabando e a escondida e silenciosa depressão do guerreiro de merda que friamente dispara foguetes, morteiros e metralhadoras sobre seus acoitados inimigos, mas se viu vencido, de coração mole, por um par de olhos suplicantes e indefesos…

    Os soldados riem felizes em volta do braseiro, se banqueteando com as carnes tenras do nunce abatido, enquanto à distância, eu vou roendo lentamente um pedaço de mandioca nova que acabei de desenterrar…

    Nunca mais comi um miligrama de carne de um animal selvagem”

  2. Cora, sou sua leitora há anos, mas esta é a primeira vez que posto um comentário aqui. A menção ao “nervo defeituoso” motivou-me a escrever. Conheço muitas outras pessoas que amam os animais, mas que também continuam a consumir produtos de origem animal e que usam argumentos semelhantes a esse. Porém, essa contradição tem conserto! A partir do momento em que uma pessoa realmente faz a conexão entre o que ela consome e a origem desses produtos, tudo muda. Isso aconteceu comigo há muitos anos – pode acontecer com você também, e com todos. É só começar a refletir a respeito e tentar entender melhor o sofrimento e a crueldade envolvidos em tantos produtos que fazem parte de nosso cotidiano – mas que não precisam fazer! (E, não, não *temos* que consumir produtos de origem animal para sobreviver; não como carne há 30 anos e minha saúde e meu astral continuam sempre ótimos! E não sou a única!) A conscientização pode ser gradual ou imediata, e as mudanças na vida de cada um também podem ser amplas ou limitadas, mas qualquer passo no sentido de reduzir o sofrimento e a crueldade é um passo na direção certa. Deixo aqui uma sugestão: a campanha “Segunda sem carne” (http://www.segundasemcarne.com.br/). O site fornece muitas informações úteis. É um começo.

    Tudo de bom e um abraço de uma assídua leitora vegana!

  3. “e mais pano ainda para mangas” — Brilhante texto Cora! Como sempre, uma expert nas frases, nos trocadilhos, na síntese — também, com pai escritor o que poderia sair não é?
    Não importa sobre o que você escreva, se sobre maquiagem, peixes, chips ou batatas, é um prazer encontrar uma nova crônica com a marca Ronái.

  4. Coitados dos pangas. Sair da água pra esteira pra degola é uma visão bem triste.
    Tenho pena de boi, frango, peixe, e fico abismada quando as minhas gatas exercem poder sobre os insetos que se atrevem a entrar em casa.
    Era pra eu ser vegetariana, mas tem um nervo que liga meu estômago ao cérebro, que na hora da fome faz eu esquecer do caminho percorrido pelo alimento antes de chegar ao prato.
    Eu não gosto de açougue. Não corto um pedaço de carne em bifes (embora use garfo e faca num filé no meu prato) nunca usei tesoura num frango, e odeio anzóis.
    Se dependesse das minhas mãos, certamente a minha alimentação seria diferente.
    Eu tenho a noção que sou um ser menor por pensar de um jeito e agir de outro. Tenho gens filosóficos sufocados por preguiça e incoerência.
    Me alivia que na minha profissão, contribuo com o extermínio de streptococos mutans. E não sinto pena deles. Vivo bem com isso.

    Seu texto faz uma parábola no raciocínio. Estava quase vendo vc de malas prontas indo conferir a gênese de um filé de panga congelado. Mas até a última linha, notei que continua sendo a Cora que eu conheço. 🙂

    • Eu tenho este mesmo nervo defeituoso, Monca. Meu cérebro pensa uma coisa, meu estômago exige outra. Sou a mais culpada das carnívoras…

    • Eu sempre me considerei a mais hipócrita das pessoas porque adoro animais, não tenho coragem de matar nem aranha, mas como coisas que não olhem pra mim e não me lembrem do que foram. Me lembro de receber um esturjão inteiro num restaurante russo e imediatamente pedir que retirassem a cabeça, para que eu não o associasse a um ser vivo.

    • “Animal de presa”, sei-me carnívoro. No entanto, só entro numa churrascaria se for convidado e mesmo assim procuro mais os frios. Agora: adoro peixes e crustáceos, o que vem a dar no mesmo – animais sendo sacrificados para a minha alimentação preferida. Como você, Monca, se dependesse das minhas mãos, eu comeria madioca crua. Aliás, há alguns anos eu escrevi algo sobre meu drama psicológico em atirar num animal para comer. Vou procurar o texto..

  5. como eu disse sobre a sua primeira crônica, o que me intriga mesmo é o hoax, quem se dedica a criar uma história maluca como essa, o detalhe dos vermes, etc. tem meio uma teoria da conspiração rolando por aí de que o boato foi disseminado pela indústria pesqueira nacional. mesmo assim, gostaria de conhecer o autor do texto…
    sobre a crônica de hoje (ótima de ler, para variar), li um pessoal lá no seu fb estranhando como esse peixe viaja tanto e chega aqui tão barato. vou mais ou menos repetir o que disse lá: acho pouco provável que o vietnã tenha um ministério da pesca, mas, se tiver, aposto que o ministro deve ser especializado em fisgar peixes e não fiéis.
    []’s

    • Perfeito, nelson!

      Lá certamente não tem ‘Ministério da Pesca’, mas periga ter um ‘Gabinete da Presidência da República Brasileira’, sinecura de um petista da nomenklatura…

      • é isso aí, tom. no brasil, além das corrupções em geral, temos que aguentar essa aura cafona de novo-riquismo…

        []’s

  6. Já havia lido o hoax. Faz tempo. Não gosto muito de peixe, não. Inclusive, estou fazendo um grande esforço para ser vegana. Acho que estou conseguindo. Se a pesca da família do peixe é com anzol, rede, ou qualquer outro instrumento, por que não faz parte do veganismo? Afinal, o peixe morre asfixiado. Ou estou enganada?

    O. T – Para quem quiser conhecer um pouco mais da Índia: hoje, sexta-feira, dia 30, o Globo Repórter será dedicado à misteriosa terra. O horário deverá ser por volta de 22h20.

  7. Li a crônica da semana passada e acabei não comentando. Recebi várias vezes este apavorante hoax sobre os pangas, mas há algum tempo não acredito em tudo que vem nestes emails malucos. Imagino que os aliment6os que compramos em supermercados passam pela vigilância sanitária e então acredito também que não deixariam entrar no Brasil, para nosso consumo um produto tão condenado como estes hoax informavam. Comi um peixe num restaurante especializado em pescados e perguntei qual era o peixe e me disseram que era o panga. Hmmmm… que delícia!!! Muito gostoso mesmo.
    Se acreditarmos em todas as informações que recebemos pela internet, ficamos malucos… temos que usar o bom senso e filtrar o que é boato e o que pode ser verdade.

  8. Pois eu aqui em Itaipava nem sabia desses pangas rsrs Estive no Vietnã e não me lembro de ter comido peixe. Fiquei encantada com as bananas transformadas em deliciosas “folhas” com se fossem de papel, absolutamente deliciosas. Adoraria que alguém trouxesse o know-how da fabricação, já que bananas aqui temos aos montes!

Diga lá!