A banalidade do mal

A primeira lembrança de Shin In Geun é uma execução. Ele tinha quatro anos e, como os demais prisioneiros do Campo 14, um campo para prisioneiros políticos na Coréia do Norte, era obrigado a assistir aos exemplos que os guardas providenciavam. Sua lembrança mais marcante, porém, acontece dez anos depois. É outra execução. Dessa vez, as vítimas são sua mãe e seu irmão, e ambos morrem porque ele mesmo delatou os seus planos de fuga.

Esses dois episódios, descritos sucintamente em três páginas, abrem os trabalhos de “Fuga do campo 14”, de Blaine Harden (Intrínseca, tradução de Maria Luiza Borges). Daí até o final, 220 páginas depois, o livro se lê de um fôlego, como se fosse um romance absurdamente perverso. O que arrepia os cabelos, no entanto, é que não há nada de fictício nessa história, que recorre às memórias de Shin In Geun para contar a vida dos prisioneiros norte-coreanos. Ele está singularmente qualificado para falar sobre isso. Nasceu no campo, filho de dois prisioneiros a quem os guardas permitiram uma espécie de casamento fugaz, e lá cresceu como inimigo do estado. Para Kim Il-Sung, o Grande Líder, e Kim Jong-Il depois dele, as famílias dos prisioneiros devem expiar as suas culpas durante tres gerações. Pelos relatos de dissidentes e fotos de satélite, calcula-se que cerca de 200 mil coreanos do Norte vivam em campos de concentração.

As condições de vida são tenebrosas. Higiene é palavra desconhecida. Também não há remédios. Sobram piolhos e toda a sorte de parasitas asquerosos, e as doenças mais triviais levam à morte. A fome é constante. Os prisioneiros recebem minguadas porções de fubá diárias, e seu principal pensamento é onde e como conseguir mais comida. Vale tudo, de cascas de árvores a grãos não digeridos encontrados no esterco. Ratos, cobras e insetos são a única fonte de proteínas. Quando Shin In Geun decide fugir, não é com liberdade que sonha, mas com os pratos que lhe descreve um prisioneiro muito viajado.

Como já se pressente no prefácio – aquelas três páginas de choque – Shin In Geun não é uma figura simpática. Blaine Harden, repórter do programa Frontline e colaborador da The Economist, trata seu herói com cautela. Ele sabe que está diante de um ser humano defeituoso: até os 23 anos, quando fugiu do campo, Shin In Geun não teve uma única relação afetiva. Considerava a mãe apenas uma concorrente na obtenção de comida, e mal via o irmão ou o pai. Cresceu num ambiente de indizível brutalidade, em que os seres humanos estavam reduzidos aos seus instintos de sobrevivência básicos, e em que a delação era moeda de troca para a alimentação. Viu colegas serem mortos no que passava por escola no campo por simples caprichos dos professores, e foi brutalmente torturado. Quando deixou uma máquina de costura cair no chão, teve uma falange do dedo médio da mão direita decepada como castigo.

Shin In Geun seria um superhomem se, crescendo nessas circunstâncias, se tornasse uma boa pessoa ou, pelo menos, uma pessoa equilibrada. Quando chega à Coréia do Sul, depois de passar pela China, não consegue se adaptar. Viaja para os Estados Unidos, recebe ajuda de grupos de apoio a refugiados políticos, mas não encontra um caminho. Ponto para Blaine Harden, que não doura a pílula e descreve, ainda que com reticências, as suas tentativas frustradas de integração.

“Fuga do campo 14” é um livro terrível, mas fascinante. Devia ser leitura obrigatória para quem ainda vê estados totalitários com bons olhos.

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“Fuga do campo 14” foi a primeira janela que encontrei aberta para a Coréia do Norte. Logo fui em busca de outras. Blaine Harden faz referências a “Nothing to envy” (Nada a invejar), de Barbara Demick, que baixei da Amazon, e recomendo calorosamente a quem lê inglês. Baseado em entrevistas com dissidentes, ele mostra que, no país, a vida de prisioneiros e não-prisioneiros tem mais semelhanças do que diferenças. Como na China de Mao ou na União Soviética de Stalin, todos são perpetuamente vigiados por vizinhos e parentes; o comentário mais inocente sobre o regime pode levar uma família inteira ao campo de trabalhos forçados.

A fome é referência universal: calcula-se que entre dois e três milhões de pessoas morreram de fome na Coréia do Norte nos anos 90. Os relatos de “Nothing to envy” e de “Fuga do campo 14” são muito parecidos quando descrevem a busca desesperada por comida, e fazem com que a gente passe a olhar com renovado respeito o nosso bifinho com feijão e arroz. Outro ponto comum entre os livros é a descrição da corrupção avassaladora, base da vida cotidiana. Do funcionário mais humilde aos mais altos escalões, nada se resolve sem gorjetas, subornos, negociatas.

Um terceiro livro é “The aquariums of Pyongyang” (Os aquários de Pyongyang), de Kang Chol-Hwan . Aqui há lembranças de uma infância de relativa prosperidade e mais memórias de prisão: o autor foi deportado aos nove anos e viveu até os 18 no campo. Seu livro tem um elemento adicional de tragédia, porque a família, que vivia cercada de luxo em Kyoto, decide voltar para a Coréia do Norte de livre e espontânea vontade, acreditando na propaganda do governo. Como os outros dois, este também é uma ótima leitura.

Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa filosofia, e vale buscar conhece-las, nem que seja para ter uma idéia do país que o famigerado Carlinhos Cachoeira escolheu para enrolar o fisco.

(O Globo, Segundo Caderno, 24.5.2012)

12 respostas em “A banalidade do mal

    • Consultei The Oxford Dictionary of Quotations (1953), comprado no sebo da esquina por umas 3 pratas. Entrei no índice com ‘Evil’ (Mal). Cerca de 100 citações! Tem Shakespeare, Lucrécio e o diabo a quatro suficientes para eu concordar com, ou discordar do, ou ignorar o Mal que lhe atormenta.

  1. Berlim era um enclave totalmente rodeado pela antiga Alemanha Oriental. Berlim ocidental era capitalista, ocupada pelos americanos, ingleses e franceses; Berlim oriental era comunista, capital da Alemanha Oriental, ocupada pelos russos. O que faziam muitíssimos berlinenses? Moravam barato no setor oriental, estudavam e tinham saúde de graça no setor oriental, mas trabalhavam no lado ocidental e lá gastavam a grana para consumir. Daí o muro, erguido quase vinte anos depois da ocupação, consequência de problema muito mais econômico do que político que Walter Ulbricht, o Spitzbart, sentiu-se obrigado a bancar. Aprendi essa banalidade lendo o Time Magazine daquele tempo. Hoje, tanto o presidente como a chanceler da Alemanha unificada vêm da Antiga Alemanha comunista. Não estranhemos, pois, a maldita austeridade econômica que caracteriza aquela chata da Angela Merkel, cuja pessoa, por sinal, se parece cada vez mais com o rico Paul McCartney vestido de mulher.

  2. Eu me espanto com a nossa percepção de ‘terrível, mas fascinante’. É nisso que o mal nunca é banal. O mal é uma contramão, é o dilema do ser (ou não ser) humano.

    Se eu tiver que voltar, queria nascer oxigênio.

  3. eu não desejo mal aos outros não, mas alguém, que mesmo por vias tortas, defenda ou justifique uma situação dessas, merecia viver pelo menos um pouco nesses paraísos socialistas. quer dizer, acho que desejo mal, sim.

    []’s

  4. E, no entanto, o PC do B afirmou:
    “O camarada Kim Jong Il manteve bem altas as bandeiras da independência da República Popular Democrática da Coréia, da luta anti-imperialista, da construção de um Estado e de uma economia prósperos e socialistas, e baseados nos interesses e necessidades das massas populares.”

  5. Banalidade do mal é expressão de Hannah Arendt. Fui à wikipedia para entender que ela se refere especialmente ao Holocausto e àqueles que o executaram pelo simples fato de obedecer a ordens como qualquer pessoa normal.

    Muitos norte-coreanos acreditam viver no melhor dos mundos sob as melhores regras e os melhores macetes de acomodá-las. Em lugares mais civilizados, na Suécia, por exemplo, sempre haverá um jeitinho de se dar uma burlada na voracidade dos impostos. Por toda parte, independentemente de ideologia ou besteiras semelhantes, a regra principal diz respeito ao primado de seu pirão. Enquanto a Coreia do Norte mata e tortura gente, o ocidente puxa a tomada de objetos inventados ontem para impedir que as massas famélicas escapem da prisão do consumo insaciável. É a ditadura do partidão de um lado e a ditadura do cartão de crédito do outro.

    Se nossos males parecem melhores, a ênfase é na palavra banalidade.

  6. O título da Hanna Arendt caiu muito bem neste seu ótimo seu artigo, com um desfecho de arrepiar.
    Barbaridade…. 😦 felizmente, eu ainda me espanto e assusto, diante de tais atrocidades.

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