Hipopótamos: uma tendência?

Em geral, não gosto de livros em que os narradores são crianças. Na maior parte das vezes, eles são extremamente artificiais e não conseguem convencer o leitor — ou, pelo menos, esta leitora aqui. Por causa disso, “Festa no covil”, de Juan Pablo Villalobos (Companhia da Letras, tradução de Andreia Moroni), passou mais tempo do que deveria na minha pilha de livros para ler. Comi mosca. Apesar do  tamanho diminuto (apenas 88 páginas) “Festa no covil” é um grande romance, que não poderia ter sido desenvolvido de outra forma.  Afinal, é a inocência de Tochtli, o pequeno filho de um traficante mexicano, que cria o clima bizarro do livro.

Afastado do mundo na fortaleza do pai, o menino comenta os piores horrores en passant, alheio ao que diz e revela. Ele tem dois tigres no seu zoológico particular, que são eventualmente alimentados com cadáveres —  mas isso é o de menos. Importante mesmo é como os bichos são bonitos de ver. Na visão de Tochtli, aliás, cadáveres não são nada macabros. Eles podem ser feitos facilmente por meio de buracos, através dos quais o sangue vaza. Ou de cortes. O fato de termos pescoço, por exemplo, é uma tentação danada para quem faz defuntos. Tochtli, cuja voz ressoa com a brutal honestidade da infância, é admirador dos franceses, que tinham a delicadeza de usar cestas para recolher as cabeças guilhotinadas antes que elas saíssem rolando.

Há um certo humor de grand guignol neste romance, que foge das descrições gráficas de violência e dos estereótipos da narcoliteratura. Seu principal personagem vive entre traficantes, é verdade, mas todos — narrador inclusive — são coadjuvantes de uma história em que a futilidade do mal brilha como protagonista.

Tochtli sonha com hipopótamos anões da Libéria. Curiosamente, outros hipopótamos atravessam as páginas — e enfeitam a capa — de um livro com um título semelhante, “A festa do século”, de Niccolò Ammaniti. Já me peguei olhando para os dois pensando se, por acaso, hipopótamos não serão uma nova tendência. Vai saber.

Editada pela Bertrand Brasil em excelente tradução de Joana Angélica d’Avila Melo, “A festa do século” é uma farsa deliciosa sobre a Itália de Berlusconi. A ação começa com uma reunião da seita satânica As bestas de Abaddon. Onde? Num castelo abandonado? Numa caverna? Numa casa mal-assombrada? Não! Numa prosaica pizzaria de subúrbio. Mantos, o líder, não está mostrando serviço. Nada de orgias, de sacrifícios de virgens, de ritos satânicos. A seita vai mal. Num outro ponto do mapa, o escritor galã Fabrizio Ciba participa de uma mesa redonda com um venerável autor indiano… que nunca leu. Como é um completo picareta, sai-se às mil maravilhas. E isso é só o começo.

Como num filme de Robert Altman, todas as histórias e personagens convergem para um mesmo ponto, a grande festa, promovida por Sasà Chiatti, empreiteiro miliardário e inescrupuloso. No cardápio, além de shows, comes e bebes, há um safári que terá por alvo os bichos do seu zoológico particular. Essa outra coincidência com “Festa no covil” não é à toa. Ter animais exóticos em casa, prática que já representou o suprassumo do luxo entre reis e aristocratas, é hoje o ápice da vulgaridade, coisa de quem tem dinheiro mas não tem cultura ou sensibilidade. Vide os pobres leões que, volta e meia, são aprendidos aqui mesmo com traficantes e bicheiros.

Ammaniti expõe suas personagens ao ridículo sem qualquer vestígio de piedade. Ele escreve com a ferocidade de quem está vendo o seu país ir para o brejo, perdido entre a cultura das celebridades e a corja que dá as cartas, e cria momentos de vergonha alheia tão intensos que por pouco a gente não vai ler “A festa do século” embaixo do sofá. Sua crítica tem endereço certo na Itália mas, sob muitos aspectos, cabe como uma luva num certo país tropical que conhecemos bem.

Um terceiro livro a respeito do qual eu queria escrever já há algum tempo é o oposto das duas festas. Ele me foi apresentado como um romance para “jovens adultos” mas, felizmente, não levei o rótulo a sério. Chama-se “A culpa é das estrelas”, foi escrito por John Green e é uma história de amor entre dois adolescentes condenados pelo cancer. O tema, que poderia descambar com facilidade para o sentimentalismo barato, é tratado pelo autor com melancolia, humor e respeito pela inteligência dos leitores; seus personagens são convincentes e bem construídos.

Hazel, a narradora, que vive conectada a um tubo de oxigênio, e Augustus, que tem uma perna artificial, se conhecem num grupo de apoio a jovens doentes. A despeito das suas limitações, logo estão apaixonados, e é fácil entender por que: os dois são engraçados e gentis, e discutem com a possível resignação a morte que os espreita.

“A culpa é das estrelas” é um livro triste que faz rir e pensar, uma história delicada que não merece ficar restrita a determinado gueto literário.

(O Globo, Segundo Caderno, 15.11.2012)

16 respostas em “Hipopótamos: uma tendência?

  1. Banalização e “humorização”da morte violenta. Coisa comum onde poderes paralelos praticam terrorismo contra tudo o que se lhes opõe…
    Que bom que tal coisa não existe no Brasil…

    Obrigado pelas dicas, Cora. Do Covil eu prefiro não ler, confesso.

  2. Pelo que você escreve, eu não cairia no gosto nem no conto de ‘Festa no covil’. No meu mundo, tais observações não saem do olhar de criança alguma – e usar esse olhar improvável pra vender como bizarrice me repele totalmente o interesse.
    Ou eu não entendi muito bem o que você explicou, ou nossos gostos desta vez não combinaram.

  3. Amei de paixão o livro do Green, comentei ele aqui, com o nome de clara lopez, que uso no blog: http://linhadepesca.blogspot.com.br/2012/08/a-culpa-e-das-estrelas_27.html
    O John Green é, na verdade, um multi processador ambulante de idéias, ele faz zilhões de coisas muito interessantes, que podem ser vistas a partir do facebook dele: https://www.facebook.com/JohnGreenfans?ref=ts&fref=ts
    Os outros dois livros não li, ainda, parecem interessantes. beijos, vera

  4. Olá, Cora, li “A Culpa é das Estrelas”. Amei a história! Realmente, ele faz rir e pensar! Foi uma dica que você me passou pelo Instagram. Já faz um tempo. Li também “Os Meninos da Rua Paulo” e adorei! Este também faz pensar. É lindo! Abraços

  5. Meu orientador me indicou Festa no Covil para recreação, mas ainda não consegui me desvencilhar da bibliografia obrigatória pra me dedicar à leitura do romance. Mas só tenho ouvido elogios. Mais um agora. Quem dera esse feriado me desse uma folguinha da dissertação…

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