Sinta-se em casa

“Em casa”, o novo livro de Bill Bryson, publicado pela Companhia das Letras, tem 534 páginas. Em cada uma aprendemos duas ou três coisas interessantes, da etimologia de palavras inglesas aos fatos mais triviais – vocês sabiam, por exemplo, que as quedas de escadas são a segunda maior causa de morte acidental, logo após os desastres de carro? Mas se alguém espera, a partir dessa descrição, um livro pesado e aborrecido, é porque não conhece Bill Bryson, autor do memorável “Breve história de quase tudo”. “Em casa”, esplendidamente traduzido por Isa Mara Lando, lê-se como uma conversa deliciosa, que pula de um assunto para outro seguindo a curiosidade quase malsã do nosso interlocutor.

Se todos os adjetivos que usei no parágrafo anterior não bastaram para dar uma idéia do meu entusiasmo a respeito desse livro, volto um pouco no tempo. “At home”, sua edição americana, chegou há poucos meses numa das caixas da Amazon. Quando o peguei, li de uma sentada – só interrompendo a leitura, aqui e ali, para mandar vir outros livros que Bryson recomenda ao longo do texto. Bons livros têm disso, eles puxam outros na sua esteira. Pensei em recomendá-lo mas, como estava em inglês, deixei-o num canto, esperando uma oportunidade. Até que, procurando por coisa completamente diferente, descobri que existia em português. Foi uma alegria!

De posse do meu exemplar, decidi marcar duas ou três coisinhas curiosas para contar aqui. Mas a tradução é tão boa, e o texto tão gostoso, que, quando vi, estava lendo tudo de novo. Ora, já li vários livros duas vezes, mas em geral com um intervalo de muitos anos entre uma leitura e outra; ler o mesmo livro com uma diferença de meses nunca tinha me acontecido. Devo dizer que o prazer foi o mesmo das duas vezes. Quanto àquelas coisinhas que eu queria marcar, pularam de duas ou três para dezenas, literalmente: há mais de 50 folhinhas post-it coladas entre as páginas.

O que gosto em Bryson, além do estilo leve e simpático, é que não há, para ele, assunto humilde demais para uma boa pesquisa. Neste “Em casa”, ele parte de uma visita à sua própria casa para traçar uma ampla história da vida privada. Quem leu a monumental coleção francesa em cinco volumes, publicada há alguns anos também pela Companhia das letras, vai se encontrar em terreno familiar, embora Bryson não se proponha, em momento algum, a construir uma história formal.

Marquei tantas coisas no livro que escolher agora equivaleria a uma terceira leitura; não que eu não tenha vontade de fazer isso, mas madrugada vai alta, e a crônica tem prazo para ficar pronta. Escolhendo ao acaso:

— Bryson desmonta a tese de que, na Idade Média, as especiarias servissem para disfarçar o gosto dos alimentos estragados. Elas eram um luxo, e tão caras que quem tinha dinheiro para comprá-las tinha dinheiro, também, para comprar comida fresca. É claro que, antes das geladeiras, as especiarias – sobretudo o sal – eram fundamentais na preservação da carne. Em 1513, Henrique VIII mandou abater 25 mil bois e salgá-los para uma campanha militar.

— “Na Idade Média, caravanas de até 40 mil camelos – com até 110 quilômetros de comprimento – transportavam sal através do Saara, desde Timbuktu, na África Ocidental, até os animados mercados do Mediterrâneo.”

— “Chicago recebeu sua primeira lagosta em 1842, trazida da costa leste em um vagão refrigerado. Os habitantes da cidade vinham vê-la como se tivesse chegado de outro planeta. Pela primeira vez na história, os alimentos não precisavam ser consumidos perto de onde eram produzidos.”

— Thomas Jefferson, que cultivou mais de 250 tipos de legumes, foi o inventor das batatas fritas.

— Não temos mais idéia de como era escuro o mundo antes da luz elétrica. Velas eram caras, e poupadas em quase todas as casas. “Abra a porta da geladeira e você verá uma luz mais forte do que o total que havia na maioria dos lares no século XVIII.”

— Mesmo nas casas mais limpas, vivemos cercados de uma quantidade de seres minúsculos. Um colchão médio em termos de idade, limpeza e conservação é o lar de dois milhões de ácaros; um décimo do peso de um travesseiro de seis anos de idade é composto de pele descamada, ácaros vivos e mortos e fezes de ácaro (vou comprar travesseiros novos ontem!).

— “As termas romanas tinham bibliotecas, lojas, salas de ginástica, barbeiros, esteticistas, quadras de tênis, lanchonetes e bordéis.”

— A queda do Império Romano pôs os banhos fora de moda. O continente mergulhou num período de sujeira calamitoso. Havia exceções: a rainha Elizabeth, por exemplo, tomava banho fielmente uma vez por mês, “quer precisasse, quer não”. Essa moda durou. Ainda em 1950, na Inglaterra, as repórteres de uma revista feminina não podiam fazer referências a banheiros, pois pouca gente os tinha em casa e isso poderia humilhar as leitoras.

— Quando pensamos no mundo antigo, falamos muito da peste bubônica, mas a varíola era a pior das doenças: era devastadora e quase universal. Até a vacina ser criada, no século XVIII, matava 400 mil pessoas por ano na Europa.

o O o

Na foto de hoje, Toró, o gatinho resgatado nas enchentes do ano passado, totalmente em casa.

(O Globo, Segundo Caderno, 17.5.2012)

25 respostas em “Sinta-se em casa

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  3. Você me deixou tão curiosa que hoje passei na Fnac, folheei o livro, comprei e vou começar a ler daqui a pouco. Pelo que vi ao folhear vou adorar 🙂

  4. Sobre a luz elétrica, lembrei-me de um livro onde uma moça viaja ao início do século XX. Ao entrar num vilarejo ao escurecer, pergunta por que todos estão sentados na porta de suas casas. Resposta: “Ora, e o que vão fazer dentro de casa?!”

    No mesmo livro, surge como grande novidade a “ice box”, ou seja, uma geladeira que era mantida fria com barras de gelo que tinham que ser repostas todos os dias. Havia um serviço de entrega de gelo em domicílio.

    Não sei se o livro comenta, mas o abridor de latas surgiu muito tempo depois da invenção das latas.

  5. Mais uma vez, obrigada Cora pela sugestao. Esse eh o tipo de leitura ideal para “summertime”. Ja procurei na biblioteca do bairro e eles tem todos os livros do autor (print, e-books e audio). OBA!!! Sabe, Cora, voce deveria abrir um espaco para o livro do mes, assim como a Oprah. Seria um baita de um sucesso. Beijos.

      • Marise, eu moro em Virginia, EUA, e o bairro que mencionei era Fairfax. Nao sei o que faria se nao fossem as bibliotecas publicas. No tempo que eu morava no Brasil (Rio de Janeiro) e cheguei ate a trabalhar em 2 excelentes bibliotecas publicas (Copacabana e Leblon) que nao existem mais. O Brasil, acho, segue a tradicao europeia: o leitor “constroi” a sua propria biblioteca. Aqui, desde meados do seculo XIX, a plebe (na qual eu me incluo) tem a oportunidade de se instruir e se informar sem precisar gastar o rico e suado dinheirinho… Um abraco.

  6. Além de vários, tenho um defeito muito, mas muito grande, mesmo! Quando começo a ler um livro e estou gostando, não o largo nem por decreto divino. Isso já aconteceu com vários e vários. Vou de “enfiada”… não como, não durmo e não largo o “bendito”.
    Quanto a travesseiros, sei que devemos trocá-los, no máximo, a cada 2 anos. Os meus não tinham essa idade, mas os troquei há pouco mais de um mês. Agora, quanto ao colchão, vai ser difícil encontrar um igual ao que tenho. Preciso fazer uma pesquisa, pois quando vou às casas de minha irmãs (que são “normais”), ou vou a hotéis ou congêneres, só durmo vencida pelo cansaço. É incrível. Sofro muitíssimo. Pena de ganso? Nem pensar… afunda a cabeça e me “afoga”!
    Cora, veja se no livro ele explica a razão de ser maio o mês das noivas. Dá um asco…

    Se você fizesse um concurso para saber qual de seus gatos seria o mais charmoso, o mais bonito, daria um grande empate.

  7. Realmente a crônica foi ótima e o assunto sedutor, embora quinhentas e tantas páginas……rs Mas vou, pelo menos, dar uma folheada antes de me decidir (tenho mania, que estou procurando controlar, de comprar livros). Adorei foi a estória do banho da rainha com o “quer precisasse, quer não”….rs bjks

    • Não se assuste com as quinhentas e tantas páginas! Quando você estiver terminando o livro vai ficar com pena, achando que poderia ter mais umas quinhentas…

  8. Bill Bryson também é um dos meus autores favoritos. A leveza e simplicidade (enganosa) com que ele aborda assuntos tão diferentes demonstra sua seriedade como pesquisador e competência como autor. Seus textos conquistam.
    A primeira referência que vi sobre o “Em Casa” foi no blog da Fal e, sobre “Shakespeare”, foi aqui, no seu blog. Comprei ambos no dia seguinte; já li e reli ambos, “Caminhando na Floresta” é irresistível, o “Breve História” é uma delícia e os livros de crônicas são ótimos.

  9. Oi Cora! Sou sua fã, mãe de gato e editora. Sou colunista da Publishnews e da Revolução ebook. Gostaria de entrar em contato com você para trocarmos figurinhas. Darei um curso dia 14 de junho em São Paulo, mas moro no Rio. Tenho me especializado e escrito sobre ebooks.
    Deixo meus contatos e se possível, deixar meu comentário oculto. Beijocas

  10. Olá Cora. Olha, eu tomei um susto quando ví a foto do Toró. Pensei: o que a Zizi está fazendo no jornal???!!! Zizi é um dos gatos que moram comigo e minha esposa. Ela parece irmã gêmea do Toró. Só você vendo. Parecidos demais!

  11. O vontade de ler…
    E o que é isso? Banho mensal quer precisasse ou não… Só de pensar começo a me coçar =0O

    Toró em pose linda.

  12. Ótima crônica, Cora, daquelas que dão vontade de ir correndo pra livraria.
    A foto do Toró está maravilhosa. Me bateu uma saudade daquele “animal selvagem”…

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