Sociologia turística

Era 1977, eu tinha 24 anos e o sentimento do mundo. Acabara de chegar à Inglaterra, havia feito check-in e esperava o elevador no hotel elegante em que o governo britânico hospedara o grupo de jornalistas latino-americanos do qual eu fazia parte. Para os meus colegas, repórteres de turismo, aquela era só mais uma viagem a um país que todos conheciam de sobra; para mim, era uma aventura. Não apenas era a primeira vez que visitava a Grã-Bretanha, era também a primeira vez que viajava sozinha. Tudo era novo e muito, muito interessante.

Quando o elevador chegou e a porta se abriu, mesmo os meus tarimbados colegas levaram um susto: lá dentro, um árabe, vestido a caráter, vomitava a alma. Ninguém teve coragem de entrar, o árabe obviamente não tinha condições de sair e logo a porta se fechou. O funcionário da recepção, inicialmente aparvalhado com a cena, recobrou o juízo e chamou o elevador, para acudir o homem. A porta se abriu e lá continuava ele, escorado numa das lindas paredes de madeira trabalhada. Por algum motivo, a porta se fechou de novo e mais uma vez se abriu, e o árabe lá, verde e vomitando.

Nisso chegou o outro elevador, fomos embarcados com nossas malas e não vi como acabou a história. Ainda hoje lembro da cena porque, além do inusitado do abre e fecha da porta sobre o cidadão que vomitava, eu nunca tinha visto, até então, um árabe vestido de árabe. Os do carnaval, naturalmente, não contavam. Era a época dos petrodólares, e até ir embora, uma semana depois, eu veria diversos outros árabes — e, mais exótico ainda, até algumas mulheres árabes, cobertas de preto dos pés à cabeça, circulando pelas lojas como rainhas.

Depois disso estive várias vezes em Londres, ora em viagens de trabalho ora em escala rumo a outros lugares, sempre às carreiras, sem tempo para passear sem destino. Agora, acabo de voltar de duas semanas de férias em que, se não tirei o atraso, pude, pelo menos, me atualizar em relação à cidade.

Naquela primeira viagem, Londres estava toda arrumada para o jubileu da rainha — tal e qual neste ano de 2012. Tivemos, Sua Majestade e eu, a sorte de sobreviver aos 35 anos entre um jubileu e outro (ela certamente melhor do que eu) e de acompanhar mais mudanças do que jamais teríamos imaginado.

Naquele já remoto ano de 1977, a Inglaterra ainda era um país insular. Apesar da crescente quantidade de refugiados e de imigrantes, Londres era uma cidade essencialmente inglesa, servida por ingleses para ingleses. As vendedoras das lojas, os taxistas, os carteiros, os funcionários do metrô e do hotel, os carregadores, os garçons, todos eram ingleses.

Hoje o que mais se vê em Londres é o resto do mundo. No metrô ouvem-se dezenas de línguas numa única viagem, num sensacional mosaico sonoro. Em Bayswater, onde fiquei, todas as lojas, sem exceção, são servidas por estrangeiros. Há indianos nas operadoras, paquistaneses e russos nas mercearias, chineses, gregos, libaneses e italianos nos restaurantes, brasileiras nos salões de beleza. A banca da rua, miúda e despretensiosa, exibe, diariamente, mais de vinte jornais — impressos, em sua maioria, em línguas que sequer identifico. Nos dois supermercados da vizinhança, há produtos de toda a parte do planeta; mas, como se não bastasse, há um terceiro supermercado, só de produtos orientais, em que é impossível adivinhar o que é o que e para que serve.

Por uma vez que seja, palmas para a burocracia brasileira, que obriga todos os produtos importados a trazerem etiquetas em português. Já impliquei muito com isso, até porque as etiquetas são feias e acabam sendo coladas por cima das originais, mas depois de várias visitas frustradas a mercadinhos chineses pelo mundo afora reconheço a importância de se respeitar a língua local. Os rótulos do que se vende no Brasil são compreendidos pelos brasileiros; os rótulos do que se vende na Inglaterra (e na Suécia, e na Alemanha, e na França, e em tantos outros lugares) são, por vezes, incompreensíveis para os nativos. Qualquer bom sociólogo de botequim pode, sem muito trabalho, transformar esses humildes pedacinhos de papel em metáfora para a vida local.

E, por falar em vida local: foi ótimo trocar o escândalo daqui pelo escândalo de lá! Enquanto nós discutimos o mensalão, os ingleses discutem as fotos topless da duquesa de Cambridge. Todos, tabloides inclusive, estão no auge da indignação, culpando o papparazzo atrevido que fez as fotos, a revista que as publicou, o público que as consumiu. “Coitada da Kate!”, uivam em uníssono, aparentemente esquecidos de que compostura faz parte da liturgia do cargo. Se a futura rainha não quer ser fotografada com os peitos de fora, que conserve a parte superior do biquini, ora essa. Como a gente pode ver à vontade nas nossas praias, isso não é nenhum sacrifício.

(O Globo, Segundo Caderno, 27.9.2012)

24 respostas em “Sociologia turística

  1. Pingback: Sociologia turística « Meu mundo e um pouco mais

  2. Cora, parabéns pela crônica “delicnha” pura de ler.

    De acordo, ” Se a futura rainha não quer ser fotografada com os peitos de fora, que conserve a parte superior do biquini, ora essa.”
    Até minha empregada disse algo parecido com um sonoro, “ajoelhou, tem que rezar”.

  3. Que crônica gostosa de ler. obrigada!
    Eu queria ver aqui estas mulheres todas cobertas, com telinha escondendo o rosto, como vi muitas em Munique… ficaríamos com medo porque poderiam estar escondidos atrás destas “fantasias” bandidos para nos assaltar!!! Ou seriam confundidas com os “bate-bolas” só que de luto… e será que aguentariam o calor daqui???

  4. Por aqui, na minha terrinha, em rápidas passagens pelas praias de Tróia e Sesimbra, pude constatar que a pindaíba econômica não inibiu as meninas de circularem e até jogarem bola com seus belos seios ao léu (belos porque pequenos como é da minha preferência). Abstive-me de apontar ostensivamente minhas lentes em direção às beldades, até para evitar que as minhas canelas sofressem possíveis impactos dos sapatos da Nina… É claro que se eu descobrisse Kate Middleton por ali, eu assumiria todos os riscos possiveis e fotografaria à vontade, porque a praia é livre e celebridade é exposição.

  5. Eu conheci a Inglaterra mais ou mesmo nessa mesma época, Cora. Gosto de algumas mudanças, nem tanto de outras. Não concordo muito com essa idéia de se mudar para um outro país e querer viver como se estivesse no seu. Se for assim, porque não fica por lá? Entendo a vontade de eventualmente comer alguma refeição do seu país, e para isso encontram de tudo nessas mercearias etnicas. Sempre que minha irmã quer fazer alguma coisa daqui, recorre às mercearias africanas e indianas, onde encontra aipim, banana madura, etc com a vantagem de achar aipim descascadinho, pronto pra cozinhar. Já as bananas maduras, algumas vezes compra quilos “a preços de banana dos bons tempos” porque os ingleses acham que estão estragadas e liquidam!
    Quanto aos peitos da Kate, tinha entendido que ela estaria em local protegido, privado e que não poderia ser invadido. Será que agora que eles são de domínio público, poderão ser exibidos sem restrição? 😉

    • Em relação à Kate, pelo que li, eles estariam na casa de um amigo, e, o ambiente era sim protegido e privado. Na verdade, acho que esse é o grande problema da situação, mais que ela mostrar os peitos: as fotos foram tiradas num lugar onde, supostamente, eles teriam a privacidade garantida.
      Me lembrou a história, de muitos anos atrás, em que um fotógrafo subiu numa árvore pra fotografar a Madonna no banheiro de casa.
      É algo bem diferente se estar em casa, ou na casa de amigos, de estar na piscina de um clube, numa praia ou local aberto. Se estou nua em casa, ninguém tem o direito de usar uma câmera com zoom potente e me fotografar do outro lado da rua. É invasão de privacidade pura e simples. Acho que é isso, mais que os peitos, que está causando toda a celeuma.

  6. Marcia Valente,
    Incrível é que é preciso muito mais valentia pra expor o bumbum do que os peitos!
    🙂

    Importância pros peitos da Kate, só casada com o príncipe mesmo. Nada de mais nem de menos a silhueta da mocinha.

  7. Por Mohammad! Um árabe à carater vomitando a alma imortal no elevador?
    Esse elevador ia até o céu?
    O fish and chips não caiu bem, coitado!

    :-O

  8. Oh!! Como eu queria que fossem os peitos do meu país que estivessem de fora. E, não os fundilhos…

  9. Quanta diferença entre cá e lá!… Por mais esculhambados que sejamos, somos mais autênticos. Não, não se trata de aforismo, não. É a realidade. Por essas e por outras, é que quem me desperta uma baita simpatia é o britânico príncipe Harry, que faz o que lhe dá na telha e não dá bola pra torcida. E viva o Harry!

Deixar mensagem para Nelsinho Cancelar resposta