Uma janelinha para o futuro

Houve um tempo em que as perguntas que eram feitas a nós, jornalistas da área de tecnologia, eram relativamente fáceis de responder:

— O que é hardware?

— O que é software?

— Mac ou PC?

Para as duas primeiras, Sérgio Faria, homem por trás do Catarro Verde, blog de grande sucesso, inventou uma definição hoje clássica: “Hardware é o que você chuta, software é o que você xinga”. Em relação à terceira, posso garantir uma coisa: se todas as palavras escritas sobre o assunto fossem colocadas uma ao lado da outra, a lista iria da Terra a Plutão e daria a volta. Tudo isso, vejam vocês, é do tempo em que Plutão ainda era um planeta.

As perguntas hoje são muito mais complicadas, porque envolvem, entre outras coisas, o futuro dos livros e do jornalismo e, de permeio, pegam o fator tablet. Semana sim outra também, recebo questionários de alunos aflitos que precisam entregar a pesquisa para ontem.

— Quais foram as mudanças que a web trouxe para o jornalismo?

— Como deve ser o jornalismo nos tablets?

— Em quantos anos acaba o jornalismo em papel?

— Os livros vão acabar?

Não, os livros não vão acabar porque, para dizer a verdade, dá para escrever um livro inteiro a partir de cada uma dessas perguntas (lidos daqui a cinco anos, porém, todos parecerão incrivelmente ingênuos e datados). Estamos, mal e mal, dando os primeiros passos de um caminho desconhecido, que nem imaginamos para onde nos levará. O “The Daily”, lançado para iPad por Rupert Murdoch para ser o jornal dos novos tempos, não me parece estar fazendo sucesso. Não sei quantos exemplares são baixados diariamente, mas a ausência de referências ao que quer que tenha publicado é conspícua. Em compensação, notícias dos bons e velhos jornais de papel, eventualmente em suas personas virtuais, não saem das caixas de ressonância da web.

Curiosamente, onde melhor vislumbro o que se pode ver da vastidão à nossa frente é na área dos livros, e não para o Kindle, onde apenas apresentam, em nova mídia, o seu conteúdo tradicional, mas nos tablets, onde experimentam a tecnologia que está a seu alcance. Os lançamentos mais criativos são, como seria de se esperar, na área dos livros infantis; mas, como já comentei aqui uma vez, há o exemplo encantador de uma tabela periódica (“The elements”) que é um sonho para qualquer um.

Há poucos dias, baixei “The fantastic flying books of Mr. Morris Lessmore”, da Moonbot Books, um encanto para qualquer angloparlante, grande ou pequeno. Seus autores, William Joyce e Brandon Oldenburg, contam que se inspiraram, em igual medida, no furacão Katrina, em Buster Keaton, no Mágico de Oz e na paixão pelos livros. A história, curiosa e paradoxalmente, é um hino de amor aos livros em papel: conta as aventuras de Morris Lessmore (cujo nome, em inglês, lê-se como “mais é menos mais”, more is less more), para quem a vida é um grande livro, e o que lhe acontece num maravilhoso ninho de livros voadores.

No “livro” do iPad, as crianças podem colorir a paisagem, mudar a direção dos ventos, tocar piano – mas, com tudo isso, a história segue sendo a principal atração. Não é um feito pequeno, e recomendo a todos os interessados em publicação eletrônica o download dessa pequena e poética amostra de futuro. Para quem não tem iPad, um pulo à página morrislessmore.com, na web, diz muita coisa.

O aplicativo de hoje é o Filter Mania, para o esquadrão do Instagram. O aplicativo, para iOS (leia-se Apple), destaca-se entre a multidão de semelhantes pelos filtros engenhosos e originais, como vocês podem ver pelas fotos. É gratuito, mas oferece pacotes de filtros adicionais pagos.
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(O Globo, Economia, 20.8.2011)
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Uma dica para Rejane


  
“Graças a você ganhei no meu aniversário dois exemplares de ‘Cidade Máxima’, de Suketu Mehta, tendo quase sido presenteada com um terceiro”, escreveu a Rejane Serksnys. “Este último não chegou a ser comprado, porque a minha amiga me avisou antes que, por indicação sua, seria o meu presente de aniversário. Como você anda influindo até na compra de meus presentes, gostaria de ter a sua indicação para fazer a troca do segundo Bombaim. Qual a sua dica?”

Quem recebe uma mensagem tão simpática só pode mesmo dar  risada, e mostrá-la para os amigos. É o que estou fazendo. Ao mesmo tempo, vai que alguém mais esteja precisando de uma dica de livro? Vocês já leram “Fernando Pessoa, uma quase autobiografia”, de José Paulo Cavalcanti Filho? A edição é da Record, tem 734 páginas que podem amedrontar as almas mais delicadas e é, sem trocadilho, um grande livro. As tais 734 páginas passam rápido, muito mais rápido do que gostaríamos.

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Antes, um parênteses. Algumas pessoas reclamam que não falo suficientemente de livros de autores brasileiros. Têm razão. O problema é que estou cercada de autores brasileiros, o que significa que, escrevendo sobre o livro de um amigo, corro o risco de magoar outros dez sobre cujos livros não disse palavra. Não porque não tenha, necessariamente, gostado do seu trabalho, mas apenas porque a crônica é um espaço livre que deve ter seu rodízio de assuntos.

E por que esse papo agora? Porque, há tempos, penso em explicar isso a assessores de imprensa, autores e patrulheiros de modo geral. Parênteses fechado.

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Pensei muito na dica para a Rejane. “Cidade máxima” é uma reportagem extraordinária, um trabalho de pesquisa meticuloso alinhavado com uma prosa da melhor qualidade. Não poderia sugerir a ela nada menos do que isso. E aí me lembrei do livro de José Paulo Cavalcanti Filho, ao qual se pode aplicar a mesmíssima definição.


José Paulo foi atrás do seu personagem com uma tenacidade exemplar. Não deixou um papel por revirar, uma carta por ler. Andou pelo mundo atrás de Pessoa e dos seus amigos, juntou os pontos onde havia pontos a juntar, usou as palavras do próprio Pessoa para reconstituir a sua vida e, onde faltaram essas palavras, preencheu os claros com informação impecável, inteligência e sensibilidade. Ele nos traz, com riqueza de detalhes, o Portugal em que viveu Pessoa, com seus hábitos, personagens e modas; até receitas, para que o leitor curioso possa ter o gosto de experimentar o que alimentava o poeta.

Vale acrescentar que essas receitas funcionam muito bem. Todas foram testadas por Maria Lecticia, mulher do autor, pesquisadora e historiadora da culinária nordestina, que, aqui e ali, fez algumas adaptações, especialmente em relação a ingredientes que já não se encontram mais.  

Além da vida de Fernando Pessoa, acompanhamos também as andanças e o trabalho de José Paulo. O resultado é que, quando acabamos de ler essa biografia magnífica, temos dois novos amigos: Fernando Pessoa e José Paulo Cavalcanti Filho.

Eu, que tenho boa estrela, já conhecia o último de longa data; mas confesso que pouco sabia a respeito de Fernando Pessoa. Ou, por outra, sabia aquilo que sabemos todos, meio por alto, e mais um tantinho que aprendi na bela edição de “Fernando Pessoa, uma fotobiografia”, de Maria José de Lencastre, publicada pela Imprensa Nacional portuguesa em 1981.

Do livro de José Paulo, porém, emerge um homem completo, retratado em praticamente todos os momentos da vida; uma figura real, que passa a ocupar o lugar da abstração que, em maior ou menor grau, tínhamos em mente.

Troque o seu “Cidade Máxima” excedente por este “Fernando Pessoa”, Rejane. Você não vai se arrepender. E ah, sim: ainda que atrasado, parabéns pelo aniversário!

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As causas de um quebra-quebra como o de Londres são complicadas demais para que eu sequer tente entendê-las, quem dirá explicá-las; mas um ponto, me parece, não pode deixar de ser ressaltado, o da distorção de valores gerada pelo consumismo pornográfico que nos cerca.

Como eu já escrevi algumas vezes, antigamente usavam-se vestimentas cujo valor variava de acordo com material e acabamento, assim como os sapatos podiam ser melhores ou piores mas, em essência, cumpriam apenas as funções de proteger e enfeitar os pés.

Hoje não. Deixamos de comprar roupas e calçados para consumir griffes e conceitos, e passamos a ser julgados menos pelo que somos do que pelo que temos. O que a publicidade nos apresenta como passaporte para a felicidade é, no seu avesso, o caminho para uma desilusão e uma frustração tão grandes que, um dia, assim como um bueiro da Light, podem explodir sem mais nem menos na rua.

Isso, claro, é só parte da equação, porque nada justifica o vídeo mais revoltante que vi dos acontecimentos. Um rapaz está ferido, sentado no chão, encostado a uma parede. Outros se aproximam, um o ajuda e o põe de pé… para que os outros possam abrir a sua mochila e roubá-lo! Aí, sinceramente, todas as minhas teorias vão para o brejo. O ser humano, como sempre diz o Millôr, é um animal inviável.

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Por falar em animais inviáveis: quando é que as autoridades brasileiras vão perceber que a população adulta do país tem suficiente capacidade para decidir o que quer ou não quer assistir?! Até aqui, tudo o que este lamentável episódio de censura conseguiu foi fazer a fama de um filme que não merece sequer ser mencionado.



(O Globo, Segundo Caderno, 11.8.2011)