O futuro do passado

Um dia, traduzindo um pequeno livro de memórias de Agatha Christie, me vi diante de um problema curioso. O título original, “Come tell me how you live”, à primeira vista bastante simples — Venha me contar como você vive — tinha um trocadilho embutido. É que, no livro, Dame Agatha conta aventuras que viveu ao lado do marido arqueólogo Max Mallowan em suas escavações no Oriente Médio; e a inocente palavra “tell”, que todos julgamos conhecer tão bem, tem um significado muito preciso em arqueologia. Um tell, que em árabe ou hebraico significa um tipo de morro, é sinal inequívoco de ocupação humana . Os tells se formam, ao longo dos séculos, através dos detritos deixados pela erosão, e têm alta incidência de materiais de construção e resíduos domésticos. Um tell inexplorado faz a alegria de qualquer arqueólogo.

(Depois de muito quebrar a cabeça, desisti de usar tell no título e optei por outra expressão de duplo sentido; o livro passou a se chamar, em português, “Desenterrando o passado” — que podia ser o da autora, escrevendo as suas memórias, ou o da humanidade, sendo descoberto pelo marido.)

Nunca me esqueci dessa palavra, tell, que me deu tanto trabalho. E foi nela que pensei, imediatamente, quando li, na Slate, um ótimo artigo que defende que a época de ouro da arqueologia, que para muitos terminou com a descoberta do túmulo de Tutancamon, ainda está por vir. A professora de antropologia Sarah Parcak, que o escreveu, argumenta que, pela primeira vez, os arqueólogos estão chegando aos sítios que pretendem explorar com coordenadas geográficas exatas, baseadas em dados da Nasa e de satélites comerciais. O Worldview, velho conhecido de quem busca imagens feitas do espaço, é uma das fontes favoritas dos novos Indiana Jones. Até mesmo o Google Earth tem se provado uma boa ferramenta.

A arqueologia espacial (que é como se chama essa atividade) usa sistemas de sensores aéreos ou espaciais para descobrir aldeias e cidades, monumentos e até leitos de rios já desaparecidos, atualmente cobertos por vegetação, água ou pura e simplesmente perdidos no tempo. As pistas são dadas por diferenças muito sutis nas características ambientais, mas captadas pelos programas que analisam os dados dos satélites.
Imaginem as possibilidades: estima-se que, apenas na região do Oriente Médio, existam cerca de 50 mil tells! Milhares de novos sítios já foram descobertos por pesquisadores ao redor do mundo via satélite; graças a um sistema chamado LIDAR (de Light Detection and Ranging) foi encontrado, nas florestas do Camboja, um imenso assentamento até aqui desconhecido.

O problema é que a descoberta por imagem é só a ponta do iceberg; a exploração propriamente dita continua sendo feita da forma tradicional, o que implica não só só levantar recursos para as expedições, como, sobretudo, chegar até os sítios, em geral de difícil, quando não impossível, acesso.

As novas ferramentas da arqueologia permitem acompanhar também a atividade dos ladrões de antiguidades. As últimas imagens dos satélites mostram que, apenas no Egito, as escavações ilegais aumentaram 500% desde a Primavera Árabe. Os pesquisadores são capazes de distingui-las das demais por causa dos contornos — elas são feitas às pressas, sem o rigor do trabalho científico.
(O Globo, Economia, 5.10.2013)

21 respostas em “O futuro do passado

  1. Não chega a ser trocadilho, mas o acrônimo LIDAR (Light Detection and Ranging) nos remete a RADAR (Radio Detection and Ranging).

  2. minha empresa recém importou os equipamentos e está começando a utilizar o lidar no campo da topografia e engenharia.
    []’s

      • não, a gente utiliza o modelo terrestre cinemático, o aparelho é montado sobre um veículo, parece um pouco com o sistema do street view.
        []’s

        • o equipamento consiste num scanner om laser classe I, de última geração, e combina as imagens captadas por 2 câmeras digitais com a varredura laser de alta velocidade (500 mil pontos por segundo) e precisões planialtimétricas superiores a 5cm. a tecnologia de varredura laser captura dados relativos às posições horizontais e verticais (x, y, z) e radiometria (cor), através de feixes laser e fotografias. é como se fosse uma foto em 3d completamente georreferenciada.
          []’s

            • pois é, cora, eu estou doido para saltar fora, ir curtir uma vidinha simples em lumiar, mas eles vêm com essas coisas e “pull me back in”…
              []’S

  3. Cora.
    LI sua cronica no Globo e lembrei que algum tempo atras vi num canal de tv por assinatura,não lembro qual, que estão usando esse sistema de satélite para descobrir a rota de migração do Povo Maia desde Uxmal ou Palenque até a Florida e a Georgia. Depois de localizarem os locais onde existem os tell ,fizeram voos de avião e fotografaram /filmaram as regiões mapeadas.
    Na terceira etapa estão indo por terra aos locais.Pelo mapeamento aéreo localizaram duas cidades,com piramides e símbolos.O sitio arqueológico da Georgia está dentro de uma reserva florestal de acesso complicado mas o da Florida está intacto e começando ser explorado em terra.No filme citam e mostram dois livros publicados nos anos 70/80 do século 19 sobre esses locais.
    No final do documentário eles associam Miami com Maia.
    Você certamente pode descobrir mais sobre isso. Vale a pena.
    Boa noite
    João Victorio

  4. Sempre fui uma leitora voraz da Agatha Christie, e lembro muito bem que adorei este livro Desenterrando o passado !

  5. Muito interessante, Cora.
    Tenho visto alguns documentários que citam a arqueologia espacial e, ao que parece, os maiores sítios estão localizados na China, portanto impossíveis de serem estudados, ao menos a curto prazo.

  6. O texto (O futuro do passado) foi de uma ‘elegância’ a começar pelo título. Que escrita elegante! (li 2 vezes. quando se tropeça em algo assim – como essa fluidez,… se aproveita).
    Agora, o desfecho de Marise Caetano : “O mundo está perigoso até pra quem morreu há milhares de anos.” é lapidar 🙂
    Obrigada.

  7. Agatha Christie foi a porta pra minha paixão por mistérios, livros e filmes policiais. Poirot e Miss Marple viveram na minha imaginação e confesso que nenhuma das versões cinematográficas corresponderam às minhas.
    Mais tarde, quando li suas biografias, entendi que fantástica foi a vida dessa senhora.
    Quanto a essas novas escavações, temo por ladrões e pelo que os fundamentalistas podem destruir. O mundo está perigoso até pra quem morreu há milhares de anos.

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