Contra a censura e o obscurantismo

Na última quarta-feira, os usuários da internet em inglês levaram um sacode de uma notável quantidade de sites, a começar pela venerável Wikipedia, que passou o dia fora do ar. A idéia – dar um alerta geral sobre dois sinistros projetos de lei que devem ser votados pelo congresso americano na próxima semana – foi extremamente bem sucedida. Mais de um milhão de assinaturas contra os projetos foram encaminhadas através do site da Electronic Frontier Foundation, e quase cinco milhões de norte-americanos subscreveram uma petição do Google; mas, mais importante, 13 senadores mudaram de posição a respeito da indigitada legislação, e deixaram de apoiá-la.

Entre os vários protestos contra o Stop Online Piracy Act (Sopa) e o Protect Intelectual Property Act (Pipa), destacou-se uma palestra de emergência do TED, feita por Clay Shirky, professor da NYU, explicando a origem e os possíveis efeitos dos dois projetos. Shirky abriu a palestra apresentando o caso de uma padaria da sua universidade que fazia bolos de aniversário confeitados com desenhos fornecidos pelos clientes, em geral obras das próprias crianças homenageadas. Mas como volta e meia apareciam um Mickey ou uma Pequena Sereia nos desenhos, a padaria foi obrigada a acabar com o serviço, porque estava infringindo o copyright da Disney. Hoje ainda é possível comprar lá bolos de aniversário enfeitados, mas apenas com a meia dúzia de desenhos padrão oferecidos pela casa.

A analogia com o que pode vir a acontecer com a internet caso os famigerados projetos de lei sejam aprovados é perfeita: a rede com que colaboramos e que se formou graças ao conteúdo produzido e compartilhado por nós mesmos se transformaria numa estufa censurada onde só se encontraria o que passasse pelo crivo da indústria do entretenimento norte-americana. Os efeitos dessa censura local, contudo, teriam alcance mundial, já que boa parte da web passa pelos Estados Unidos. Twitter e Facebook estão baseados lá, assim como os principais servidores de blogs, como o WordPress e o Blogspot.

Na Inglaterra, em tom de troça, o site do Guardian criou a Guardipedia, uma alternativa para internautas em síndrome de abstinência da Wikipedia. Patrick Kingsley, um dos seus blogueiros de tecnologia, dispôs-se a responder às perguntas dos leitores consultando a Enciclopédia Britânica da biblioteca do jornal. As dificuldades, porém, logo ficaram óbvias: a última edição em papel data de 1989. Além disso, os livros não têm função de busca nem fazem links, o que torna todo o processo mais demorado.

Brincadeiras à parte, o que está em jogo na batalha entre Hollywood e as gravadoras, de um lado, e o povo da internet, de outro, são duas visões de mundo distintas, dois tempos radicalmente diferentes. O futuro da rede deve ser decidido neste embate entre passado e presente.

O histórico da Motion Pictures Association of America (MPAA) e da Recording Industry Association of America (RIAA), as duas poderosas associações que estão por trás dos projetos de lei, é péssimo: firmemente ancoradas no passado, elas são incapazes de perceber as mudanças que acontecem à sua volta, mesmo quando podem beneficiá-las. No caso mais notório da sua longa história de combate às novas tecnologias, está a tentativa de proibição de fabricação de aparelhos de vídeo-cassete. Para Jack Valenti, então presidente da MPAA, a invenção da Sony seria comparável ao estrangulador de Boston, a indústria cinematográfica sendo uma donzela solitária e desprotegida.

No fim, como se sabe, o estrangulador e seus descendentes, os players de DVD e de Blu-Ray, salvaram a vida da pobre donzela, que teria morrido de inanição se ficasse restrita às salas de projeção…

 

(O Globo, Economia, 21.1.2012)

16 respostas em “Contra a censura e o obscurantismo

  1. Lá pelos anos 60-70 havia um belo crioulo vestido de túnica e turbante imaculadamente brancos a vender as mais deliciosas cocadas do ecúmeno. Intitulava-se ‘o rei da cocada’, ou será imaginação minha? Alzheimer ou não, afirmo categoricamente que a expressão ‘rei da cocada preta’ tem origem concreta: o rei, a cocada, o tabuleiro, o encanto.

    Enquanto assistimos grandes irmãos gratuitos tipo google, twitter, facebook, se engalfinhando pelo sagrado direito de espionar o comportamento de nosso bolso, a única maneira legal de traçar a verdadeira cocada do rei era passar pelo negão e pagar no ato.

    Com ou sem direito, com ou sem pirataria, tudo, tudinho que baixamos pela teia maldita terminará remunerando ainda mais a ganância concentradora e totalitária de nossa civilização capitalista.

    Trabalhadores, lavoratori, taqui uma banana pra vocês!

  2. meu nexus one acabou de morrer 😥

    não sei o que comprar agora… qual é o smartphone com android que vc testou que mais gostou?

  3. Por falar em preço de Blue Ray por aqui: Comprei no “Target” um album do “West Side Story” contendo 3 discos: Um com o filme completo em DVD, outro idem idem em Blue Ray e mais um de lambuja em blue ray com toda a história da produção (uma espécie de making of).
    Nos dois sistemas as imagens são perfeitíssimas em alta definição!

    Paguei módicas 10 pratas americanas pela preciosidade.

  4. Coríssima, como ”produtor de conteúdo” (ô expressão!) concordo que a festa do TUDO FREE não vai continuar. Que estímulo teria um escritor para fazer um livro se o trabalho será baixado em dias? O mesmo acontece com a música, onde as bandas estão tendo que trabalhar mais… No meu caso, fotógrafo e futuro fazedor de imagens em movimento, como colocar comida no prato se tudo for grátis? E quase já é… É claro que o SOPA-PIPA dá margens à movimentos sombrios, mas viste o estilo de vida ”gangsta” do Kim Dotcom, dono do Megaupload? O sujeito, de péssimo gosto, diga-se, é bilionário, tem Rolls, Lamborghinis e afins. Alguém ganha dinheiro.

    Uma solução seria baratear os conteúdos. Um videogame aqui custa quase R$ 200! Blu ray R$ 80! E o photoshop? Mais de R$ 3mil!! Tenho certeza que se os valores fossem bem mais baixos, os níveis de pirataria seriam muito baixos. E nem quero imaginar se aquela famigerada lei da informática continuasse. Ainda estaríamos no fósforo verde. Beijos.

  5. Nosso histórico de censura está nos fazendo ver as coisas sempre de uma maneira errada. Os projetos de lei não tem nada a ver com censura, tem a ver com dinheiro. O fechamento de sites é consequência disso.

  6. Muito bom seu texto. Liberdade para os internautas!!! O que está em jogo mesmo é muita grana que eles acham que irão perder. Se fosse isso, como ficaram os artistas com tanta musicas baixadas…

Diga lá!